segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Conto "O Invisível da Arte"


O Invisível da Arte

Chamava-se Margarida. Sonhava com primaveras e margaridas brancas. À noite, escrevia poesia no aconchego do quarto, na mesa junto à janela com vista para o pequeno rio, onde o luar refletia por entre a vegetação. Durante o dia, moldava ideias e sentimentos com as mãos, pincéis, tintas e telas. Depois, dava tempo ao tempo para que as suas obras ganhassem nome, pois só o tempo consegue aprimorar a personalidade e o sentimento de uma criação.

Margarida nunca expôs os seus quadros nem publicou ou leu os seus poemas em público. A sua obra era conhecida apenas pelo seu gato, que, com as garras, ia dando "pinceladas" em algumas telas sem vidro de proteção, e por mim, que entrei na sua casa à noite enquanto ela dormia. Se não fosse assim, nunca teria tido oportunidade de saber o que ela fazia ou de conhecer a sua arte. Era uma curiosidade que crescia em mim: "como é que ela preenchia o tempo?". O gato dela, claro, nunca me diria nada.

A casa da Margarida era pequena, toda transformada em atelier e sala de exposição. Lá pontificavam os quadros, algumas esculturas, livros, tudo etiquetado. Também havia folhas A4, em molduras simples, com poemas e textos seus. 

Ela escrevia todas as noites, às vezes pela madrugada dentro, com os joelhos e os cotovelos frios, mas o coração quente. O silêncio dava-lhe a serenidade e a luz necessárias.

— Só as mãos e as tintas, não me bastam. Preciso das palavras. — Dizia Margarida para si mesma.

E deixou gravado numa folha de papel:

"NO RIO DA MINHA VIDA
TIVE DIAS CONSUMIDOS
MERGULHADA NOS MEUS SONHOS.
NUNCA FORAM REPETIDOS."

Continuou a escrever até ficar cansada e, por fim, deixou-se vencer pelo sono.

Algum tempo depois, já ela deveria dormir o primeiro sono, entrei na sua casa disfarçado de fantasma. O gato ronronava na sua almofada. A respiração dela era forte e pausada, em paz, tomada pelo cansaço.

Naquele dia não pintou nem escreveu muito — talvez não fosse dia de grande inspiração. Peguei em três quadros que estavam na parte inferior da estante e duas molduras com poemas. Pensei: "Ela não vai notar a falta". E saí cuidadosamente pela janela.

Decidi levar aquelas obras a alguém que as pudesse analisar e aquilatar da importância artística, para que pudessem, ou não, ser dadas a conhecer ao público.

No dia seguinte, ainda antes das dez horas, pus-me em frente à porta do museu a aguardar a abertura, acompanhado pelos quadros e pelas molduras com poemas. Poucos minutos depois das dez, a porta abriu-se. Pedi para falar com a pessoa responsável. A senhora respondeu-me com simpatia:

— Sou funcionária da Câmara Municipal, chamo-me Rosa Rio, mas trate-me só por Rosa. Trabalho aqui há mais de quinze anos. Pode falar comigo. O que pretende?

— Bem... o assunto pode parecer um pouco estranho, mas terei de lhe contar a história muito resumidamente. — E continuei:

— Uma senhora minha amiga pinta quadros e escreve poesia e prosa. Todavia, guarda tudo em casa. Vive quase sempre fechada com o seu gato e não se expõe nem mostra os seus trabalhos a ninguém. A casa dela é um atelier e um autêntico salão de exposição. Também não é dada a convívios e praticamente não comunica com ninguém. As compras sou eu quem as faz. Ela faz uma lista das compras e envia-me pelo telemóvel, e eu entrego-lhas em casa. A nossa comunicação faz-se essencialmente por mensagens ou e-mails. Praticamente não falamos de viva voz.

A minha curiosidade foi crescendo ao longo do tempo. Mas, ontem à noite, depois de ter a certeza de que ela dormia, entrei por uma janela, que deixa sempre semiaberta para a circulação do ar, disfarçado de fantasma para não ser reconhecido. O meu espanto, quando deparei com tal galeria de arte. Fiquei boquiaberto. Mas como não sou técnico, apenas um apaixonado pela arte, trago-lhe estes trabalhos para aquilatar da sua importância artística.

A senhora do museu respondeu:

— Bem, eu também não sou perita em arte. Mas, além do "amor à camisola", como se costuma dizer, tenho conhecimentos adquiridos ao longo da vida prática aqui no museu, da convivência com o Mestre, o fundador, e também de algumas formações que fiz nesta área. Deixe-me lá ver o que traz, porque agora também fiquei curiosa. - esclareceu D. Rosa.

— Vamos retirar dos sacos com cuidado para não danificar. — Pedi-lhe.

Ela colocou com cuidado os quadros encostados à sua mesa, recuou dois ou três passos, pôs a mão a segurar o queixo e, com ar muito sério, pôs-se a observar. Passados dois ou três minutos, perguntou:

— Acha que os quadros que lá ficaram têm mais ou menos qualidade do que estes? 

— A pergunta é de difícil resposta. Trouxe estes porque os admiro e estavam num lugar em que acho que ela não vai dar pela falta até logo à noite. Não posso trazer mais. Penso que ela tem lá mais bonitos e menos bonitos, dependendo do gosto de quem os vê.

— Muito bem. Nesse caso vamos pensar na possibilidade de os expor numa das nossas salas. O senhor vai pedir-lhe autorização para trazer as melhores obras. - disse a D. Rosa.

— O melhor será falarmos ambos com ela. Se for eu a dizer-lhe nem acreditará ou não valorizará, e tudo acabará aí. Se a D. Rosa for lá comigo falar-lhe, talvez ela seja menos irredutível. Mas nada é garantido. — Sugeri.

— Podemos ir logo, no final do meu trabalho aqui no museu. Mas não sei onde mora a Margarida.

— Passarei aqui pelas 18h00. Eu levo a D. Rosa. Depois deixo-a novamente aqui.

— Combinado. Pode ser um bocadinho depois das 18h. Certo?

Cheguei ao museu antes das 18h00. Aproveitei para fazer uma pequena visita e rever a obra do Mestre.

Pelas 18h15 saímos do museu rumo à casa da Margarida. Foram cerca de dez minutos de viagem, aproveitados para anteciparmos cenários de reações possíveis.

Ainda não tínhamos chegado e já avistávamos, na varanda, uma tela no cavalete e a sombra da Margarida por detrás.

— Está na varanda a pintar. Como faremos para levar as peças? — Perguntei intrigado.

—  Esse problema já sabia que o iria ter, quer fosse com ela acordada ou a dormir. Não se preocupe. — Acrescentou a D. Rosa para me acalmar.

— Chegámos. Este é o mundo dela. — Apresentei o espaço com mão.

— Um lugar fora do bulício do centro, mas com a aura de um pequeno paraíso. — Disse D. Rosa. 

Ainda algo longe de Margarida para lhe falarmos, ela antecipou-se, surpreendendo-nos:

—  Não trazem os quadros das pinturas e dos poemas? — Perguntou.

— Oh, que ela deu pela falta das peças. — Balbuciei para a D. Rosa. — O que faço agora?

— Agora... falamos com ela, e depois traz-lhe as obras. — Sugeriu Rosa. E continuou:

— Vejo que se sente desconfortável no meio de tudo isto. Deixe estar, que eu falo com a Margarida.

— Boa tarde Margarida.

— Boa tarde D. Rosa e Sr. João. Foi estranho o desaparecimento das obras, talvez algum fantasma as tenha levado, tal como a visita que me fazem. O que desejam?

— Bem, sem rodeios, vou direta ao assunto: O Sr. João levou cinco obras suas para serem avaliadas com a expectativa de as expor. Achei-as boas. E, do ponto de vista artístico, há interesse em serem mostradas a quem gostar de arte. Todavia, são necessárias mais obras para uma exposição. Podemos ver as que tem? — Prosseguiu Rosa.

— Farei uma breve análise para escolher as que entenda que devem ser expostas. Prometo, desde já, que teremos, como sempre, todo o cuidado para não danificar os trabalhos.

 E acrescentou: — Relativamente à sua vontade de não se expor, teremos o maior gosto em que esteja presente, pelo menos, na abertura ou no fecho da exposição. Mas respeitaremos a sua decisão de querer ir ou não. — Concluiu Rosa.

— Colocadas as coisas dessa forma tão linear, aceito. Só lhes posso ficar agradecida, e feliz pelo interesse em expor os meus trabalhos. Mas já não posso dizer o mesmo em relação à minha presença. Desculpem-me. Mas não irei. — Sentenciou Margarida.

Apesar de preparados para duas respostas negativas, depois de ter ouvido, surpreendentemente, positiva a primeira, autorizando que se expusessem os trabalhos, a segunda deixou no ar um espectro de desânimo e surpresa. Mas não o suficiente para nos desviarmos do rumo traçado.

— Quer selecionar as obras para levarmos, por favor? Enquanto as escolhe, eu coloco-as no carro. — Sugeri a D. Rosa.

— Vamos, vamos entrando, por favor. Fiquem à vontade. — Disse Margarida, que seguiu na nossa frente.

D. Rosa começou de imediato a selecionar os quadros, e eu levava-os para o carro sem demoras.

Pouco mais de meia hora passara, e o carro já tinha a mala e os bancos traseiros apinhados. Alguns quadros mais pequenos foram colocados na parte da frente, onde a D. Rosa teve de "lutar" para caber junto deles.

Muito rapidamente despedimo-nos da Margarida, demostrando uma grande vontade de a ver na exposição dos trabalhos dela.

— Margarida, sem a querer estar a forçar a nada, a decisão é sua, será uma enorme satisfação vê-la na exposição dos seus trabalhos, que vamos preparar com todo o gosto, para abrir ao público, extraordinariamente, de segunda-feira a uma semana, e encerrar no domingo. Até um dia destes. — Concluiu D. Rosa.

— Obrigado e até breve. — Agradeceu Margarida, acenando com a mão.

Os dias passaram rápido com as habituais rotinas, acrescidas pela preparação da exposição. Algumas vezes, também tive de ajudar a D. Rosa. Para a Margarida e para o seu gato, os dias passaram de forma mais lenta, devido aos espaços que ficaram vazios na sua casa.

Tal como havia sido combinado com Margarida, a exposição não fora anunciada em lugar nenhum. Contudo, D. Rosa, aqui e ali, deixava escapar a quem visitava o museu que andava muito atarefada porque estava a preparar uma exposição "que não expunha". Essa frase ficava no ouvido e aguçava a curiosidade dos visitantes.

Pouco faltava para as 10h00 da segunda-feira. Apenas eu e a D. Rosa estávamos no museu, ela olhou à sua volta para confirmar que tudo estava em ordem e colocou um pequeno volume de catálogos do evento numa mesa junto à entrada.

Assim que confirmou que tudo ficou pronto, D. Rosa destravou as duas portas, abrindo-as quase em simultâneo, e em tom de anúncio televisivo, disse:

— Faço a abertura do museu nesta segunda-feira e dou por inaugurada a exposição de pintura e poesia intitulada: "O Visível do Invisível da Arte", da pintora e poetisa Margarida.

Como era a única pessoa ali presente, bati palmas e desejei sucesso para o evento.

A manhã passou com apenas quatro visitantes, que, ao saberem da exposição, fizeram questão de a ver. A parte da tarde trouxe mais gente, o que é habitual segundo a D. Rosa.

O número de visitas ao museu foi crescendo a cada dia, e os visitantes mostravam-se satisfeitos, pelo que se percebia das conversas à saída. A sala onde a obra da Margarida estava exposta tornou-se passagem "obrigatória".

Na sexta-feira, foi necessário fotocopiar catálogos. O sábado teve bastante mais visitas — chegaram a estar no interior da exposição mais de uma dezena de pessoas, por alguns períodos —. O domingo foi mais calmo do que o sábado, mas mais concorrido do que a sexta-feira. Muitos dos visitantes eram estrangeiros e emigrantes portugueses. Nos últimos dias, vários quadros de Margarida ficaram sob reserva para serem vendidos, caso ela autorizasse.

Perto da hora de encerramento, uma senhora entregou um envelope à D. Rosa, e deu-lhe os parabéns pela organização e pela beleza das obras.

— Estou a reconhecê-la agora. Desde sexta-feira que tenho andado tão atarefada que nem presto a devida atenção às pessoas. Peço desculpa. Agradeço-lhe muito as suas palavras. Como está a amiga poetisa Joana Ramo? É para reservar algum quadro? — perguntou D. Rosa.

— Estou bem. Obrigada. A próxima semana será certamente mais tranquila para si. Não, não é para reservar, vim apenas entregar-lhe um envelope que uma amiga me pediu. Peço-lhe desculpa, tenho de ir. Obrigado por tudo D. Rosa. — Concluiu a poetisa.

D. Rosa colocou o envelope na gaveta, mas ficou curiosa. Virou-se para mim e perguntou:

— Ainda estão muitas pessoas na exposição "O visível do Invisível"?

— Penso que apenas quatro pessoas. — Respondi.

— Bem... vou começar a arrumar. Pode ser que também se arrumem. — Disse D. Rosa, a sorrir. 

Pegou no envelope, ansiosa, e começou a ler:

"Vi com os meus olhos, algo cansados da tela da vida e das cores que nem sempre a pintam, que há momentos que ficarão para sempre: os gestos simples das pessoas, os sorrisos e expressões espontâneas de carinho e afeto. É na singeleza e simplicidade que os olhos vislumbram as cores do conforto da gratidão e do amor.

Vi tudo isso estampado nos olhos dos visitantes que enchiam a sala. Senti-me feliz no meio das pessoas, na sala que denomino por:  "Sala Am'Arte".

Muito obrigada a todos os visitantes. Muito obrigada, D. Rosa e Sr. João. Um bem-haja a todos.

Margarida."

D. Rosa deixou-se vencer por um misto de sentimentos: estupefação, curiosidade e comoção. E falou em tom reprimido:

— Sr. João, Sr. João, ela esteve aqui. Temos que perceber quando e como.

— Ela quem? — Perguntei.

—  A Margarida. Temos de puxar pela memória ou pelas imagens da videovigilância. — Disse apreensiva, D. Rosa.

Decidimos ver as gravações dos últimos três dias. O domingo não revelou nada. Sábado de manhã também não. Mas, ao ver as da tarde de sábado, a D. Rosa quase gritou:

— Pare, pare... é ela.

Voltámos atrás e lá estava, vestido comprido verde com pequenas margaridas brancas, chapéu de aba larga a cobrir-lhe parte do rosto e óculos escuros. Ao entrar, fez uma vénia com a cabeça ao passar pela D. Rosa, escondendo-se ainda mais. Usou o chapéu como um escudo para se proteger, caminhou pela sala, ouviu comentários, sorriu discretamente. Parecia feliz.

— Não há dúvida que é a Margarida. Pareceu-me mais alta. — Disse D. Rosa.

— Efeitos do vestido comprido e do salto dos sapatos. Mas muito elegante. — Acrescentei.

— Agora teremos de falar com a Margarida, para ver se quer vender os quadros reservados.

— Vamos a casa dela amanhã?  — Perguntei.

— Sim. Amanhã é a minha folga. — Devolveu D. Rosa.

Na segunda-feira, à hora marcada, fomos à casa da Margarida. Estava tudo fechado, o gato não estava na cadeira de baloiço, e havia um papel no vidro da porta: "Correspondência ou assuntos - Dirija-se ao balcão da Piscina Municipal".

No balcão, a funcionária entregou um envelope a D. Rosa. Dentro, uma carta que dizia:

"Agradeço-lhes muito, D. Rosa e Sr. João. Ausento-me por tempo indeterminado.

Relativamente à minha obra deverão consultar o meu advogado, cujo cartão para contacto se encontra junto”.

A D. Rosa, com o seu desembaraço habitual, pegou logo no telemóvel e ligou para aquele número. A funcionária do escritório, informou-a da doação de toda a obra a favor do museu, cuja documentação já estava assinada pela Margarida e Câmara Municipal. 

— Oh... Que grande e agradável notícia. − Exclamou D. Rosa, de lágrimas nos olhos.

Abraçámo-nos emocionados, celebrando a Arte, a Cultura, e sobretudo, o talento, a generosidade e a discrição de Margarida.

A sala dedicada à sua obra passou a ter o nome "Sala AmArte".

FIM