Texto que integra a Antologia de Natal - 2024, Chiado Editora.
NATAL NO RIO
Corre no rio da vida um mar de
histórias reais verdadeiramente surreais, mais surreais do que a própria real racionalidade
suporia, parecendo a mais pura ficção aquecida, horrivelmente testada e
subtilmente não explicada.
Ora, a ficção da realidade é
um útil opiáceo para o Homem, fazendo-o acreditar, andar, transformar-se,
crescer e reproduzir-se. Crescer como um rio, que surge das singelas gotas de
água lacrimejadas pelo ventre da terra e que se vão juntando até formarem um
fino fio de água, dando as mãos a outras tantas gotinhas, e outras, e outros
tantos mais fios de água, até formarem um caudal generoso designado por rio.
Malogradas, muitas delas não sabem porque estendem a mão ou porque dão a mão.
Apenas o fazem porque as outras também o fazem.
Como se sabe, o rio corre
sempre aumentando o seu caudal através das afluências que chama a si, e por si
vai deslizando de forma incorrigível até outro rio ou até ao mar. E no mar,
tudo o que é lançado dilui-se na sua grandiosidade e perigosidade.
Nós, neste mar turbulento e
turvo de ódio, ganância e guerra, não podemos nunca perder de vista o horizonte da
nascente do rio, a nascente da água pura da vida inocente e frágil, da vista
imaculada e sonhadora do menino que olha com angústia e tristeza para este rio,
que no seu curso vai perdendo pureza e vai-se transformando numa mixórdia de
águas impróprias.
Somos águas em movimento de um
rio tendencialmente em degeneração de virtudes. Não deixemos morrer a criança
que ainda pode viver em nós. Alimentemo-la todos os dias.
Olhando para a corrente do rio
que somos, que aprendamos a conviver melhor com as nossas próprias margens e
limites, com os nossos peixes, com as nossas plantas, com a biodiversidade que
nos circunda, e com a nossa própria essência. Só assim o menino terá um brilhozinho
de esperança nos seus olhitos.
Feliz Natal todos os dias!
José António de Carvalho
Vermoim, Vila Nova de Famalicão