O Invisível da Arte
Chamava-se Margarida. Sonhava com primaveras e margaridas brancas. À noite, escrevia poesia no aconchego do quarto, na mesa junto à janela com vista para o pequeno rio, onde o luar refletia por entre a vegetação. Durante o dia, moldava ideias e sentimentos com as mãos, pincéis, tintas e telas. Depois, dava tempo ao tempo para que as suas obras ganhassem nome, pois só o tempo consegue aprimorar a personalidade e o sentimento de uma criação.
Margarida nunca expôs os seus quadros nem publicou ou leu os seus poemas em público. A sua obra era conhecida apenas pelo seu gato, que, com as garras, ia dando "pinceladas" em algumas telas sem vidro de proteção, e por mim, que entrei na sua casa à noite enquanto ela dormia. Se não fosse assim, nunca teria tido oportunidade de saber o que ela fazia ou de conhecer a sua arte. Era uma curiosidade que crescia em mim: "como é que ela preenchia o tempo?". O gato dela, claro, nunca me diria nada.
A casa da Margarida era pequena, toda transformada em atelier e sala de exposição. Lá pontificavam os quadros, algumas esculturas, livros, tudo etiquetado. Também havia folhas A4, em molduras simples, com poemas e textos seus.
Ela escrevia todas as noites, às vezes pela madrugada dentro, com os joelhos e os cotovelos frios, mas o coração quente. O silêncio dava-lhe a serenidade e a luz necessárias.
- Só as mãos e as tintas, não me bastam. Preciso das palavras. - dizia Margarida para si mesma.
E deixou gravado numa folha de papel:
"NO RIO DA MINHA VIDA / TIVE DIAS CONSUMIDOS / MERGULHADA NOS MEUS SONHOS. / NUNCA FORAM REPETIDOS."
Continuou a escrever até ficar cansada e, por fim, deixou-se vencer pelo sono.
Algum tempo depois, já ela deveria dormir o primeiro sono, entrei na sua casa disfarçado de fantasma. O gato ronronava na sua almofada. A respiração dela era forte e pausada, em paz, tomada pelo cansaço.
Naquele dia não pintou nem escreveu muito - talvez não fosse dia de grande inspiração. Peguei em três quadros que estavam na parte inferior da estante e duas molduras com poemas. Pensei: "Ela não vai notar a falta". E saí cuidadosamente pela janela.
Decidi levar aquelas obras a alguém que as pudesse analisar e aquilatar da importância artística, para que pudessem, ou não, ser dadas a conhecer ao público.
No dia seguinte, ainda antes das dez horas, pus-me em frente à porta do museu a aguardar a abertura, acompanhado pelos quadros e pelas molduras com poemas. Poucos minutos depois das dez, a porta abriu-se. Pedi para falar com a pessoa responsável. A senhora respondeu-me com simpatia:
- Sou funcionária da Câmara Municipal, chamo-me Rosa Rio, mas trate-me só por Rosa. Trabalho aqui há mais de quinze anos. Pode falar comigo. O que pretende?
- Bem... o assunto pode parecer um pouco estranho, mas terei de lhe contar a história muito resumidamente. - e continuei:
- Uma senhora minha amiga pinta quadros e escreve poesia e prosa. Todavia, guarda tudo em casa. Vive quase sempre fechada com o seu gato e não se expõe nem mostra os seus trabalhos a ninguém. A casa dela é um atelier e um autêntico salão de exposição. Também não é dada a convívios e praticamente não comunica com ninguém. As compras sou eu quem as faz. Ela faz uma lista das compras e envia-me pelo telemóvel, e eu entrego-lhas em casa. A nossa comunicação faz-se essencialmente por mensagens ou e-mails. Praticamente não falamos de viva voz.
A minha curiosidade foi crescendo ao longo do tempo. Mas, ontem à noite, depois de ter a certeza de que ela dormia, entrei por uma janela, que deixa sempre semiaberta para a circulação do ar, disfarçado de fantasma para não ser reconhecido. O meu espanto, quando deparei com tal galeria de arte. Fiquei boquiaberto. Mas como não sou técnico, apenas um apaixonado pela arte, trago-lhe estes trabalhos para aquilatar da sua importância artística.
A senhora do museu respondeu:
- Bem, eu também não sou perita em arte. Mas, além do "amor à camisola", como se costuma dizer, tenho conhecimentos adquiridos ao longo da vida prática aqui no museu, da convivência com o Mestre, o fundador, e também de algumas formações que fiz nesta área. Deixe-me lá ver o que traz, porque agora também fiquei curiosa. - esclareceu D. Rosa.
- Vamos retirar dos sacos com cuidado para não danificar. - pedi-lhe.
Ela colocou com cuidado os quadros encostados à sua mesa, recuou dois ou três passos, pôs a mão a segurar o queixo e, com ar muito sério, pôs-se a observar. Passados dois ou três minutos, perguntou:
- Acha que os quadros que lá ficaram têm mais ou menos qualidade do que estes?
- A pergunta é de difícil resposta. Trouxe estes porque os admiro e estavam num lugar em que acho que ela não vai dar pela falta até logo à noite. Não posso trazer mais. Penso que ela tem lá mais bonitos e menos bonitos, dependendo do gosto de quem os vê.
- Muito bem. Nesse caso vamos pensar na possibilidade de os expor numa das nossas salas. O senhor vai pedir-lhe autorização para trazer as melhores obras. - disse a D. Rosa.
- O melhor será falarmos ambos com ela. Se for eu a dizer-lhe nem acreditará ou não valorizará, e tudo acabará aí. Se a D. Rosa for lá comigo falar-lhe, talvez ela seja menos irredutível. Mas nada é garantido. - sugeri.
- Podemos ir logo, no final do meu trabalho aqui no museu. Mas não sei onde mora a Margarida.
- Passarei aqui pelas 18h00. Eu levo a D. Rosa. Depois deixo-a novamente aqui.
- Combinado. Pode ser um bocadinho depois das 18h. Certo?
Cheguei ao museu antes das 18h00. Aproveitei para fazer uma pequena visita e rever a obra do Mestre.
Pelas 18h15 saímos do museu rumo à casa da Margarida. Foram cerca de dez minutos de viagem, aproveitados para anteciparmos cenários de reações possíveis.
Ainda não tínhamos chegado e já avistávamos, na varanda, uma tela no cavalete e a sombra da Margarida por detrás.
- Está na varanda a pintar. Como faremos para levar as peças? - perguntei intrigado.
- Esse problema já sabia que o iria ter, quer fosse com ela acordada ou a dormir. Não se preocupe. - acrescentou a D. Rosa para me acalmar.
- Chegámos. Este é o mundo dela. - Apresentei o espaço com mão.
- Um lugar fora do bulício do centro, mas com a aura de um pequeno paraíso. - disse D. Rosa.
Ainda algo longe de Margarida para lhe falarmos, ela antecipou-se, surpreendendo-nos:
- Não trazem os quadros das pinturas e dos poemas? - perguntou.
- Oh, que ela deu pela falta das peças. - balbuciei para a D. Rosa. - O que faço agora?
- Agora... falamos com ela, e depois traz-lhe as obras. - sugeriu Rosa. E continuou:
- Vejo que se sente desconfortável no meio de tudo isto. Deixe estar, que eu falo com a Margarida.
- Boa tarde Margarida.
- Boa tarde D. Rosa e Sr. João. Foi estranho o desaparecimento das obras, talvez algum fantasma as tenha levado, tal como a visita que me fazem. O que desejam?
- Bem, sem rodeios, vou direta ao assunto: O Sr. João levou cinco obras suas para serem avaliadas com a expectativa de as expor . Achei-as boas. E, do ponto de vista artístico, há interesse em serem mostradas a quem gostar de arte. Todavia, são necessárias mais obras para uma exposição. Podemos ver as que tem? - prosseguiu Rosa.
- Farei uma breve análise para escolher as que entenda que devem ser expostas. Prometo, desde já, que teremos, como sempre, todo o cuidado para não danificar os trabalhos.
E acrescentou: - Relativamente à sua vontade de não se expor, teremos o maior gosto em que esteja presente, pelo menos, na abertura ou no fecho da exposição. Mas respeitaremos a sua decisão de querer ir ou não. - concluiu Rosa.
- Colocadas as coisas dessa forma tão linear, aceito. Só lhes posso ficar agradecida, e feliz pelo interesse em expor os meus trabalhos. Mas já não posso dizer o mesmo em relação à minha presença. Desculpem-me. Mas não irei. - sentenciou Margarida.
Apesar de preparados para duas respostas negativas, depois de ter ouvido, surpreendentemente, positiva a primeira, autorizando que se expusessem os trabalhos, a segunda deixou no ar um espectro de desânimo e surpresa. Mas não o suficiente para nos desviarmos do rumo traçado.
- Quer selecionar as obras para levarmos, por favor? Enquanto as escolhe, eu coloco-as no carro. - sugeri a D. Rosa.
- Vamos, vamos entrando, por favor. Fiquem à vontade. - disse Margarida, que seguiu na nossa frente.
D. Rosa começou de imediato a selecionar os quadros, e eu levava-os para o carro sem demoras.
Pouco mais de meia hora passara, e o carro já tinha a mala e os bancos traseiros apinhados. Alguns quadros mais pequenos foram colocados na parte da frente, onde a D. Rosa teve de "lutar" para caber junto deles.
Muito rapidamente despedimo-nos da Margarida, demostrando uma grande vontade de a ver na exposição dos trabalhos dela.
- Margarida, sem a querer estar a forçar a nada, a decisão é sua, será uma enorme satisfação vê-la na exposição dos seus trabalhos, que vamos preparar com todo o gosto, para abrir ao público, extraordinariamente, de segunda-feira a uma semana, e encerrar no domingo. Até um dias destes. - concluiu D. Rosa.
- Obrigado e até breve. - agradeceu Margarida, acenando com a mão.
Os dias passaram rápido com as habituais rotinas, acrescidas pela preparação da exposição. Algumas vezes, também tive de ajudar a D. Rosa. Para a Margarida e para o seu gato, os dias passaram de forma mais lenta, devido aos espaços que ficaram vazios na sua casa.
Tal como havia sido combinado com Margarida, a exposição não fora anunciada em lugar nenhum. Contudo, D. Rosa, aqui e ali, deixava escapar a quem visitava o museu que andava muito atarefada porque estava a preparar uma exposição "que não expunha". Essa frase ficava no ouvido e aguçava a curiosidade dos visitantes.
Pouco faltava para as 10h00 da segunda-feira. Apenas eu e a D. Rosa estávamos no museu, Ela olhou à sua volta para confirmar que tudo estava em ordem e colocou um pequeno volume de catálogos do evento numa mesa junto à entrada.
Assim que confirmou que tudo ficou pronto, D. Rosa destravou as duas portas, abrindo-as quase em simultâneo, e em tom de anúncio televisivo, disse:
- "Faço a abertura do museu nesta segunda-feira e dou por inaugurada a exposição de pintura e poesia intitulada: "O Visível do Invisível da Arte", da pintora e poetisa Margarida."
Como era a única pessoa ali presente, bati palmas e desejei sucesso para o evento.
A manhã passou com apenas quatro visitantes, que, ao saberem da exposição, fizeram questão de a ver. A parte da tarde trouxe mais gente, o que é habitual segundo a D. Rosa.
O número de visitas ao museu foi crescendo a cada dia, e os visitantes mostravam-se satisfeitos, pelo que se percebia das conversas à saída. A sala onde a obra da Margarida estava exposta tornou-se passagem "obrigatória".
Na sexta-feira, foi necessário fotocopiar catálogos. O sábado teve bastante mais visitas - chegaram a estar no interior da exposição mais de uma dezena de pessoas, por por alguns períodos. O domingo foi mais calmo do que o sábado, mas mais concorrido do que a sexta-feira. Muitos dos visitantes eram estrangeiros e emigrantes portugueses. Nos últimos dias, vários quadros de Margarida ficaram sob reserva para serem vendidos, caso ela autorizasse.
Perto da hora de encerramento, uma senhora entregou um envelope à D. Rosa, e deu-lhe os parabéns pela organização e pela beleza das obras.
- Estou a reconhecê-la agora. Desde sexta-feira que tenho andado tão atarefada que nem presto a devida atenção às pessoas. Peço desculpa. Agradeço-lhe muito as suas palavras. Como está a amiga poetisa Joana Ramo? É para reservar algum quadro? - perguntou D. Rosa.
- Estou bem. Obrigada. A próxima semana será certamente mais tranquila para si. Não, não é para reservar, vim apenas entregar-lhe um envelope que uma amiga me pediu. Peço-lhe desculpa, tenho de ir. Obrigado por tudo D. Rosa. - concluiu a poetisa.
D. Rosa colocou o envelope na gaveta, mas ficou curiosa. Virou-se para mim e perguntou:
- Ainda estão muitas pessoas na exposição "O visível do Invisível"?
- Penso que apenas quatro pessoas. - respondi.
- Bem... vou começar a arrumar. Pode ser que também se arrumem. - disse D. Rosa, a sorrir.
Pegou no envelope, ansiosa, e começou a ler:
"Vi com os meus olhos, algo cansados da tela da vida e das cores que nem sempre a pintam, que há momentos que ficarão para sempre: os gestos simples das pessoas, os sorrisos e expressões espontâneas de carinho e afeto. É na singeleza e simplicidade que os olhos vislumbram as cores do conforto da gratidão e do amor.
Vi tudo isso estampado nos olhos dos visitantes que enchiam a sala. Senti-me feliz no meio das pessoas, na sala que denomino por: "Sala Am'Arte".
Muito obrigada a todos os visitantes. Muito obrigada, D. Rosa e Sr. João. Um bem-haja a todos.
Margarida."
D. Rosa deixou-se vencer por um misto de sentimentos: estupefação, curiosidade e comoção. E falou em tom reprimido:
- Sr. João, Sr. João, ela esteve aqui. Temos que perceber quando e como.
- Ela quem? - perguntei.
- A Margarida. Temos de puxar pela memória ou pelas imagens da videovigilância. - disse apreensiva, D. Rosa.
Decidimos ver as gravações dos últimos três dias. O domingo não revelou nada. Sábado de manhã também não. Mas, ao ver as da tarde de sábado, a D. Rosa quase gritou:
- Pare, pare... É ela.
Voltámos atrás e lá estava, vestido comprido verde com pequenas margaridas brancas, chapéu de aba larga a cobrir-lhe parte do rosto e óculos escuros. Ao entrar, fez uma vénia com a cabeça ao passar pela D. Rosa, escondendo-se ainda mais. Usou o chapéu como um escudo para se proteger, caminhou pela sala, ouviu comentários, sorriu discretamente. Parecia feliz.
- Não há dúvida que é a Margarida. Pareceu-me mais alta. - disse D. Rosa.
- Efeitos do vestido comprido e do salto dos sapatos. Mas muito elegante. - acrescentei.
- Agora teremos de falar com a Margarida, para ver se quer vender os quadros reservados.
- Vamos a casa dela amanhã? - perguntei.
- Sim. Amanhã é a minha folga. - devolveu D. Rosa.
Na segunda-feira, à hora marcada, fomos à casa da Margarida. Estava tudo fechado, o gato não estava na cadeira de baloiço, e havia um papel no vidro da porta: "Correspondência ou assuntos - Dirija-se ao balcão da Piscina Municipal".
No balcão, a funcionária entregou um envelope a D. Rosa. Dentro, uma carta que dizia:
"Agradeço-lhes muito, D. Rosa e Sr. João. Ausento-me por tempo indeterminado.
Relativamente à minha obra deverão consultar o meu advogado, cujo cartão para contacto se encontra junto" .
A D. Rosa, com o seu desembaraço habitual, pegou logo no telemóvel e ligou para aquele número. A funcionária do escritório, informou-a da doação de toda a obra a favor do museu, cuja documentação já estava assinada pela Margarida e Câmara Municipal.
- Oh... Que grande e agradável notícia. - exclamou D. Rosa, de lágrimas nos olhos.
Abraçámo-nos emocionados, celebrando a Arte, a Cultura, e sobretudo, o talento, a generosidade e a discrição de Margarida.
A sala dedicada à sua obra passou a ter o nome "Sala AmArte".
FIM